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A importância dos princípios da LGPD e da Bioética para o tratamento de dados sensíveis na área da saúde

A área da saúde é peculiar. É um cenário onde transitam pessoas, emoções, sentimentos e confidências. A necessidade de sigilo e classificação dos dados e informações imprime naturalmente nos profissionais da saúde uma conduta de respeito à intimidade do indivíduo e dever de sigilo.

Mas estão todos preparados para os desafios relacionados à privacidade da informação, impostos a esta relação de confiança e respeito mútuo pela telemedicina, inteligência artificial, telerradiologia e saúde móvel habilitada para aplicativos?

Quando o assunto é privacidade, inevitável pensar em empatia, o que nos remete a um exercício de ponderação. Ponderação entre deveres e direitos, tecnologia e segurança, inovação e privacidade, benefício e permissão.

Na realidade atual, dominada pelo avanço exponencial da tecnologia, com impactos no mundo físico, digital e biológico, é premente uma reflexão sobre o que é certo e errado, ou mais adequado e menos adequado e, por fim, sobre qual caminho seguir.

Muitas são as questões decorrentes desta nova sociedade, e sabemos que tais discussões e, sobretudo, as decisões têm uma escora inquestionável que é a ética.

Segundo Lourenço Zancanaro (2001, p. 139), “a ética assume uma tarefa reflexiva em relação à tecnologia”. Preceitua o autor, que em razão dos novos desafios decorrentes da ação da tecnologia, é necessário construir uma ética baseada em imperativos que atendam os novos espaços de ação e de poder (Barchifontaine et al., 2001).

Felizmente, a Lei Geral de Proteção de Dados, mais conhecida como LGPD, faz um convite a essa reflexão ética, pois já em suas disposições iniciais, como se fosse um alicerce para os demais artigos, traz os fundamentos da disciplina da proteção de dados pessoais. Em seu artigo 2o, após declarar no artigo 1o o seu objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade, a lei estabelece que são seus fundamentos, dentre outros: o respeito à privacidade; a autoderminação informativa; a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Como lidar com esses valores sem recorrermos à ética e, no caso da área da saúde, à bioética? Como tratar dados sensíveis sem um juízo de ponderação?

Podem existir vários caminhos ou respostas, mas um deles nos leva à convergência dos fundamentos da proteção de dados pessoais com os fundamentos da bioética.

A bioética, como ética da vida, pode ser definida como um instrumental de reflexão e ação (Barchifontaine, 2001). Em face da natureza sensível dos dados referentes à saúde, a bioética nos leva à compreensão de que o respeito à privacidade converge para o respeito aos direitos de tolerância e de ser deixado em paz, assim como a autodeterminação informativa converge para o respeito à autonomia da pessoa, direito de escolha e de recusa.

Compreender o fornecimento de consentimento para o tratamento de dados pessoais e sensíveis, previsto nos artigos 7o e 11 da lei, é mais do que uma escolha de base legal, pressupõe a necessidade de compreender que o princípio do consentimento sempre supera o da beneficência. Nenhum bem, mesmo tão importante e beneficente, pode violar a moralidade da permissão (Engelhardt, 2004).

A recusa de outra pessoa é suficiente para criar uma obrigação de tolerância e, por consequência, nasce o direito de tolerância (Engelhardt, 2004).

O consentimento livre, informado e inequívoco, consagrado pela LGPD, exprime a dignidade da pessoa e, como fundamento da proteção de dados pessoais e como um dos pilares da bioética, a dignidade exige que o indivíduo possa agir, pois é o agir que confere valor à pessoa (Barchifontaine, 2001). Logo, é o fundamento da dignidade que sustenta o princípio do livre acesso e os direitos dos titulares.

Neste contexto, é importante reconhecer que os princípios previstos no artigo 6o, especialmente os da finalidade e da necessidade, têm uma pergunta precedente comum: o que fazer e o que evitar?

A resposta pressupõe recorrermos à ética da prudência.

A prudência é uma sabedoria prática e uma virtude intelectual e, na vida moral do ser humano, ocupa posição de destaque, pois ela determina comportamentos, condicionando essa vida moral, quando sugere a livre avaliação do ato que acarreta a responsabilidade de seu agente (Lepargneur, 2004).

A prudência, nesses termos, converge perfeitamente para o último, e não menos importante, princípio do artigo 6o, o da responsabilização e prestação de contas. A sabedoria está em consolidar os fundamentos do exercício da cidadania e da equidade como um imperativo da responsabilidade perante o indivíduo e titular dos dados sensíveis.

Por fim, arriscamos dizer que, no que se refere aos dados relativos à saúde, o fio condutor de reflexão que liga os fundamentos da proteção de dados aos princípios previstos no artigo 6o é a alteridade.

Conforme explica Correia (1996), a pessoa ou o “outro” é o fundamento da reflexão e da prática bioética, sendo o “outro” o ponto de referência para discernirmos se agimos bem ou mal bioeticamente.

Com base nesse conceito, indagamos se os princípios da LGPD, bem como as ações que deles decorrem, fazem sentido ou sobreviveriam sem a alteridade como critério fundamental.

Processar dados pessoais para finalidades legítimas, específicas, explícitas e informadas ao titular subentende a alteridade. Adequar o tratamento de dados às finalidades declaradas e limitá-lo ao estritamente necessário torna-se eficaz a partir da alteridade.

Ser transparente e garantir informações claras, precisas e acessíveis ao indivíduo, titular dos dados, carece da alteridade.

Enfim, a proteção de dados pessoais centrada no indivíduo subentende a alteridade. Reconhecer o titular de dados como ponto de referência para a reflexão e a ação, além de alinhar-se aos fundamentos da lei, é o que permitirá desde a adequada fundamentação legal para o tratamento de dados sensíveis, até a adoção das medidas técnicas de segurança e das práticas de proteção de dados by design e by default.

Ao que tudo indica, a LGPD, diferentemente de outras leis, traçou fundamentos já no início de seu texto legal, visando nortear todas as ações acerca de dados pessoais, visto que regulamentos e contexto social mudam, mas os fundamentos são permanentes e há necessidade de indicar balizadores para motivar a implementação de normas razoáveis e de um mínimo de consenso ético.

Referências

BRASIL. Lei Federal no 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 21 nov. 2020.

ENGELHARDT JR, H. Tristam. Fundamentos da Bioética. São Paulo: Loyola, 2a edição, 2004.

BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. PESSINI, Leo. (orgs.). Bioética: Alguns Desafios. São Paulo: Loyola, 2001.

LEPARGNEUR, Hubert. Bioética, novo conceito a caminho do consenso. São Paulo: Loyola, 2004.

PESSINI, Leo. BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. (orgs.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996.

ZANCANARO, Lourenço. A Ética da Responsabilidade de Hans Jonas. In: Barchifontaine, Christian de Paul. Pessini, Leo. (orgs.). Bioética: Alguns Desafios. São Paulo: Loyola, 2001. p. 137-159.

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